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O conflito

“As histórias são metáforas da Vida. Estar vivo é estar em conflito perpétuo” (Robert McKee)

Normalmente, quando começamos a criar uma nova história, nós começamos criando -principalmente se for de Literatura Fantástica – seu mundo ficcional. Criamos a geografia, os nomes, as características de cada evento geolocal, casas, castelos, florestas. Criamos os diversos núcleos e todas os eventos que se sucederão para acontecer as nossas histórias.

Nos diversos cursos de criação de histórias – literárias ou cinematográficas – compreendemos logo que há duas formas de criar uma história: ou criamos toda a trama e a geografia e daí elaboramos as personagens para encaixá-los no que criamos ou criamos um personagem e elaboramos a trama da história e a complexidade de sua geografia a partir de suas características. E descobrimos que muitos autores preferem a segunda opção.

Porém, para começar uma história a partir da criação do personagem, é necessário compreender que o personagem principal será aquele que terá a maior tridimensionalidade. É aquele que terá a maior profundidade. E, para que ele seja um personagem crível, terá que ter profundos conflitos internos que se desenrolarão durante a trama. Estes conflitos surgirão na forma de Falha Moral.

Mas, apesar do nome técnico, por Falha Moral devemos entender atitudes socialmente consideradas positivas ou negativas. Nosso personagem pode ser um corrupto inabalável ou alguém com intensa fé na humanidade. Pode ser um bagunceiro contumaz ou alguém com extrema mania de limpeza e perfeição. Pode ser um Santo (na correta acepção do termo) ou um Serial Killer. O mais importante é que ele terá que entrar em conflitos a partir dessa Falha Moral.

Portanto, nosso Santo poderá ter uma moral inatacável. Ser capaz de produzir milagres, curar, arrastar multidões. E para isso ele é um adepto ferrenho do celibatarismo. E ele poderá encontrar-se com uma pessoa que irá testar seus instintos. Terá pesadelos com esta pessoa. Entrará em oração profunda. Ele chegará a um ponto de largar tudo para viver este amor, para então, completamente transformado, vir a ser alguém ainda melhor (ou pior, como veremos em outros artigos). É nesse momento que ele descobre que o amor pode superar todas as dores mundanas, ou que o sexo também pode ser uma via para encontrar Deus.

Nosso Serial Killer se considera inimputável. Ninguém jamais conseguirá pegá-lo, pois ele é metódico, age sorrateiramente, não comenta com ninguém. Porém será esta Falha Moral que o colocará em apuros (Síndrome do Super-Homem?) quando ele esquece inadvertidamente de colocar o lixo de sua casa para ser recolhido – lixo que contém as luvas que ele utiliza para matar, por exemplo -, o que o levará para o banco dos réus.

Em Harry Potter, sua Falha Moral é não acreditar que ele é o garoto da Profecia.

Em Dexter, Dexter Morgan acredita que seus atos livram o mundo das piores coisas, e que, de certa forma, seus amigos e familiares jamais vão sofrer.

Em 127 Horas, o protagonista se acha tão superior, tão arrogante, tão contra tudo o que está aí, que simplesmente não avisa ninguém sobre onde vai estar, o que complica sobremaneira as buscas por ele quando se perde.

Agatha Christie tem dois fabulosos personagens: os detetives Hercule Poirot e Miss Jane Marple. Poirot confia na Justiça, confia em sua ‘massa cinzenta’ e na lógica e no método para solucionar os casos em que se envolve. Sua moral é inabalável – o que não o impede de ocultar o assassino em “Assassinato no Expresso do Oriente” ou de cometer um ato impensável em “Cai o Pano”, finalizando, assim, sua brilhante carreira.

Nosso personagem necessariamente passará boa parte de nossa obra resolvendo todos os problemas que aparecem com sua Falha Moral, até que um evento realmente importante fará com que ele veja que, se não mudar, tudo irá para o brejo. Assim, terá que mudar. E essa mudança será crucial para que ele também enxergue seus problemas, alterando, assim, não só seu jeito de ser como todo o rumo da nossa história.

Se for muito bem escrito e planejado, nosso personagem principal sequer será conhecido ou percebido pelo nosso público.

Em Procurando Nemo, o personagem principal é Marlin, seu pai. Em O Cavaleiro das Trevas é o Coringa. Em O Silêncio dos Inocentes, Clarice Starling. Em À Espera de Um Milagre, é o carcereiro. Em O Diabo Veste Prada, Andy.

Qualquer ‘não-iniciado’ colocaria como personagens principais destas obras Nemo, Batman, Lecter, Coffey e Miranda. Mas estes não mudam durante toda a obra. Batman continua sendo Batman e resolvendo conflitos como Batman. Coffey continua sendo um inocente castigado e morre sendo um inocente castigado. Lecter nunca deixa de acreditar que ele é superior que os homens que canibaliza.

Aqui, portanto, temos outra característica que nos ajuda a definir nosso personagem principal: ele será aquele que passará pelas maiores mudanças dentro de nossa obra.

Crie personagens tridimensionais, com conflitos e falhas morais marcantes, e criará empatia com seu público. Experimente, tente, faça um personagem diferente.


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