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O que a literatura de nicho pode nos ensinar?

Por Heitor V. Serpa

Literatura de nicho, romances de banca, best-sellers, água-com-açúcar, hot... Chame como quiser. O fato é que pode ser uma chuva de clichês, pode ter uma escrita pobre e repleta de furos, mas isso faz sucesso e atrai público mais do que muito “conteúdo de qualidade”. Por quê? Descubra neste artigo. Em meu artigo passado, mencionei o “preconceito com a chamada literatura de gênero”, e que isso seria assunto para o futuro... Pois o futuro virou presente, vamos cutucar esta ferida? 

“O que é essa literatura malvada aí?”

Resumindo, é o que está na moda. O que você abre no Wattpad e dá logo de cara, o que toma as vitrines das livrarias. Já foram “histórias de vampiros”, passaram por “histórias de anjos”, “ e agora a onda se divide entre “distopias” e o tal do “hot” – não aquele lá do restaurante japonês que todo mundo fala pra eu provar, mas a famosa saliência, tá ligado? Sacanagem mesmo, aquela coisa lá que o povo tira a roupa ou faz com roupa mesmo, o importante é coisar uma coisa na outra coisa. Há um preconceito por parte dos autores que “trabalham em histórias com qualidade”, pois de fato existe todo um processo de pesquisa, de aperfeiçoamento da escrita, um tentativa-e-erro infinito, pra no final uma mina lançar uma fanfic de Crepúsculo que fez sucesso e se transformou no “50 Tons”. Quem é que vende tonéis? De quem o povo fala? Não de quem escreve “fora do nicho”, eu garanto.

O objetivo deste artigo não é falar mal da obra alheia, tampouco mais uma reclamação sobre como nós, pobres aspirantes, estamos cercados de idiotas (na voz do Scar do Rei Leão). Também não analisarei como as tendências literárias funcionam: há uma ligação intrínseca entre o conteúdo artístico produzido em determinado recorte e o contexto histórico/social no qual os autores (a)(x)(y)(z)(@) se encontram no momento da criação, e algo desse escopo exige mais do que um texto de blog. 

Eu procurarei o mérito que se encontra em tais histórias. A pérola no meio da lama, isto é, se existir alguma lama. 

Quer dizer, Stephanie Meyer pode ter cometido todos os erros do mundo em sua “saga”, mas diacho, ela ganhou o mundo, e logo depois a E. L. James atingiu o mesmo feito! O fato de se reunir tantos leitores não é uma qualidade por si? Vamos lá, mais uma vez seguindo a metodologia do filósofo Esquartejador:

* Fator “S”? É o que muitos alegam. Essas pessoas caíram nas graças de alguém em especial, e só atingiram a fama graças a uma campanha de marketing em níveis absurdos demais para a realidade de um “escritor comum”.

 Vamos considerar tal possibilidade como válida: o povo engoliria a força um enredo de merda (pardon my french) só pela repetição exaustiva dele através das mídias? Eu duvido em partes: não há como negar o quinhão de culpa da “indústria” pela massificação de “conteúdo ruim”, mas também não acredito que isso desmereça o trabalho do autor(a)(x)(y... cara, é chato ficar botando isso direto, de agora em diante usarei só “autor” ou “autora” por motivos de estou a fim). Mas há trabalho em escrever uma historinha mela-cueca? Vamos ao próximo tópico: * A literatura de nicho dialoga com as necessidades do leitor. A taxa de analfabetismo diminuiu, mas nós, os “literariamente letrados” segundo C.S Lewis, somos uma minoria... E quase sempre uma minoria com privilégios. Enquanto nós aprimoramos nosso intelecto, grande parte da população busca apenas sobreviver. Difícil haver espaço para algo mais elaborado quando se trabalha doze horas por dia e tem uma família inteira esperando sua presença em casa, seja você pai, mãe, irmão ou irmã mais velha. 

Estas pessoas, quando buscam um livro, geralmente desejam algo que as façam esquecer um pouco as dificuldades da vida, ou que as carregue para os problemas de outra pessoa que não seja ela mesma.

“Identificação”, de acordo com a wiki, “é o termo usado em estúdios cinematográficos e na literatura para descrever uma relação psicológica entre o leitor de uma novela e um personagem do livro, ou entre o espectador e um personagem na tela. Em ambos os casos, leitores e espectadores se enxergam no personagem fictício.” Munidos deste conhecimento ou não, os autores de nicho conseguem a façanha de estabelecer um diálogo entre o que é seu público e o que ele deseja. 

Vemos o uso intencional do escapismo nas novelas de TV aberta: temos personagens que sofrem por diversos motivos, diálogos que na verdade são sessões de gritaria e uma ou outra palavra forte, temos milionários e pobres com aspectos de gente rica. A novela, ao mesmo tempo em que estabelece uma realidade paralela – girando em torno de grandes propriedades e “comunidades arrumadinhas” –, atira doses de drama que fazem o espectador pensar “cara, se eu tivesse ali...”. Eu não sou fã das tais novelas (pra falar a verdade eu detesto todas elas), mas a existência de um “horário nobre” tem seus motivos, e não importa que os enredos sejam os mesmos, não importa se é a quadragésima quinta reprise da “Usurpadora”, vai ter gente assistindo e comentando. A novela da TV traz a emoção que o cotidiano sufoca.

Voltando aos livros, vamos falar mais um pouco da “Saga Crepúsculo”: como se sabe, é a história de uma menina sem sal que do nada acaba como interesse romântico de dois galãs misteriosos e com poderes sobrenaturais. 

Eu não sou mulher, não posso falar sobre como uma se sente, mas entendo que problemas de estima é lugar comum em determinada faixa etária, não raro se estendendo para além dos vintes, trintas e quarentas. Sim, estou supondo que a maioria do público crepuscular é feminina, sem rasgar seda a respeito, ou esse texto não acaba! Pois, a leitora enxerga a protagonista como um espelho de si mesma – chata, comum – e este reflexo de repente tem um holofote na cara e bofes rastejando por um pedacinho seu!

Que importa a pobreza na construção narrativa ou o desconhecimento total sobre o genoma humano por parte da autora? Que importa que a protagonista tenha quase todas as características físicas da própria Stephanie? Ela conseguiu, estabeleceu uma linha de diálogo com pessoas que outrora não teriam o menor interesse em pegar num livro!

E por falar em desejos...

A literatura de nicho está livre de vergonhas... ou quase. Veja as capas dos romances de banca; elas deixam bem claro do que se trata a história. Os “idiotas do meu isso e aquilo” também não se esforçam em ocultar sua verdadeira natureza, na verdade é a exposição desta natureza quem os torna atração para um público amplo. 

Tenho alguns em meu acervo pessoal: são livros baratos, com custo de produção baixo, que se encontra aos montes pelos sebos da vida. Vou falar dos dois abaixo:

“Beijos de Fel” eu achei interessante, pois tem uma pegada na questão policial. É a história de uma mulher misteriosa e sedutora que frequenta a alta sociedade londrina pra dar uns pegas na rapaziada. Ela na verdade é alguém em busca de vingança pela morte da irmã, e os únicos detalhes que tem sobre o assassino são um retrato falado e “um beijo com gosto de fel”. A história alterna entre a caçada da moça e a ansiedade do protagonista, um homem coincidentemente parecido com o tal do retrato falado, em descobrir a realidade por trás da “mulher misteriosa” que lhe chamou para o cantinho durante um salão. A autora entrega aquilo que propôs de forma simples e efetiva, e eu falo por experiência própria que se manter no “K.I.S.S” (“Keep it Simple, Stupid!”, ou “mantenha as coisas simples, seu imbecil!”) é um feito louvável. E Gail Ranstrom vai além, entregando ganchos interessantes, tais como o envolvimento de um grupo de cultistas (você não foi o primeiro e nem será o último, Dan Brown).

“Como se casar com um marquês” honestamente não me lembro de terminar, mas a sinopse fala sobre uma mocinha obrigada a casar (Orgulho e Preconceito? Não, esse arquétipo vem de longe, Shakespeare que o diga). Ela encontra na biblioteca de casa um livro cujo título é o mesmo desta obra. Pensando ser uma brincadeira de mau gosto, porém capaz de ajudar com o sustento de seus irmãos mais novos, ela começa a leitura das “dicas de prender homem”. Em paralelo, um marquês de verdade foi chamado por uma tia da mocinha para investigar um caso de chantagem contra ela, fazendo-o se passar por funcionário novo da propriedade. Clichês a parte, essa história tem um exemplo sólido de metalinguagem, ou seja, uma história falando de si mesma. O fato de “Como se casar com um marquês” ter um livro dentro de um livro (?) demonstra uma técnica que exige mais do que só falar em corpos bonitos e casas atraentes... Talvez eu não tenha finalizado o romance pela autora não usar bem a metalinguagem, mas eu REALMENTE não lembro. E não deveria mesmo, pois esse tipo de história tem o propósito de entreter e nada mais.

Não há nada de errado em “só entreter”.

Na verdade exige bastante esforço por parte de quem escreve, pois a demanda por produção é grande, e a concorrência também... Como conciliar a necessidade da “indústria” e manter qualidade o suficiente para não quebrar a suspensão de descrença do público? Tanto Julia Quinn quanto Gail Ranstrom são máquinas de escrever ambulantes, e se estão no mercado até os dias atuais, é por demonstrarem capacidades suficientes para tal. Acredito que elas se orgulhem do próprio legado, assim como seus leitores e leitoras e leitorxs e leitorys e... Tá, chega. Basta uma pesquisa rápida, e você encontra o rosto e o histórico de vida das duas.

O mesmo não se dá com outros autores e autoras.

Muitos dos “nomes de banca” são pseudônimos, seja por homens que assumem identidade de mulher para vender livros “femininos”, seja o caso contrário: J.K Rowling chocou o mundo ao se revelar como o Robert Galbraith que estava no top de romances policiais... Mas quantas moças ainda se escondem para se tornarem “vendáveis”? Além dos preconceitos de quem está de fora, existem os dentro do próprio nicho. “Penny dreadfulls” e “chick-lits” têm gêneros específicos, assim como os nomes estrangeiros de seus responsáveis. Tem muita gente nacional que adota persona de outro país pra ter alguma chance de destaque, pois se já há quem torça o nariz pra história de jornaleiro, imagina se esta for nacional! Em terras onde as editoras dão preferência a um mercado estrangeiro consolidado, importando um best-seller que já passou por todos os filtros possíveis ao invés de dar chance a “um autor brasileiro que ninguém ouviu falar”, esta é uma manobra triste, porém necessária.

Ah, isso é meio que óbvio, mas outro motivo por trás da escolha de um pseudônimo é “não se manchar”. As contas não param de chegar, mas nem todo mundo se sente bem vinculando o próprio nome a certos trabalhos. Ainda mais quem possui uma imagem a zelar para com a família e/ou amigos... Quem assina e lucra com aquele hot escandaloso que tá no top da Amazon pode ser filho ou filha de pastores evangélicos.

Resumindo, o que podemos aprender com a “literatura de nicho”?

A apresentar uma proposta bem objetiva, sem rodeios a respeito.

Estabelecer um vínculo com o leitor antes de se pensar em referências e estilos narrativos.

Escrever algo que nós mesmos gostaríamos de ler, independente do que dizem os críticos.

E, para quem se interessa na literatura como profissão, a obrigação se reinventar constantemente, tornar-se versátil e mercantil. Pois, ideologias a parte, temos a mesma necessidade de sobrevivência destes trabalhadores e trabalhadoras que carregam leituras de bolso no transporte público.

p.s: Não me aprofundei sobre as distopias, né? Fica pra próxima. 


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