"Escritor tem que ler os clássicos?". Referências além do que ditam os velhacos.
- Histórias ao vento
- 14 de jun. de 2017
- 5 min de leitura
Por: Heitor V. Serpa

O que forma um bom escritor? A velha polêmica, sobre leitura de velhos livros, domina os tópicos de discussão. Mas como os "clássicos" se escreveram? Como eram essas lendas quando vivas? Se elas tivessem acesso à mídia do entretenimento como nós, será que compartilhariam deste tabu?
Se você frequenta grupos relacionados à produção literária, sabe que este assunto sempre aparece. O que diferencia um escritor bom “do resto”? Como se produz material de qualidade, diferenciado destes “o idiota do meu isso, a idiota da minha aquilo”? Eu não vou comentar o preconceito com a chamada literatura de gênero, isso é pano pra outro artigo... Mas o fato é que, nessa busca pela receita da perfeição, alguém sempre manda um: “leia os clássicos”.
“Ai, esse povo que só vê seriado, filme pipoca, desenho japonês, joguinho! Acha que já pode sair escrevendo um romance só com isso? Como você se considera um escritor nacional se torce o nariz pra Machado de Assis? Como você espera ter alguma técnica se consome apenas a mesma porcaria e não procura aprender com os Grandes? Como você acha que Trotsky, Tolkien, H.G Wells, Camões, Euclides da Cunha, Castro Alves e tantos outros se tornaram imortais? Sabe, na época deles não tinha Google, Netflix nem...”. Para. Na moral, chega disso. Já deu, it’s time to stop, ZA WARUDO. Como diria o filósofo Esquartejador, vamos por partes:
Eu não discordo da importância da literatura clássica para a formação de um escritor. Além do valor “técnico”, elas são fontes da época vivida pelo autor. Mais do que formas narrativas e Escolas, cada exemplar do passado lhe dá a chance de ter uma palhinha de eras não vividas... E realmente, não tinha google na época deles. A literatura era um ofício bem mais restrito, pois as barreiras na difusão do conhecimento obrigavam o artista a fazer malabarismo com o que sabia do próprio idioma. Pra piorar, essas mesmas barreiras limitavam o público. Poucos eram os que liam. Isso leva ao segundo tópico:
Quando vivo, o “autor clássico” era apenas um autor. Como você, talvez com uma escrita mais bruta, que levou anos e anos e ANOS para formar um legado. E sem importar o quão genial fosse o sujeito, as chances dele não ter o devido reconhecimento de seus contemporâneos era um fato que se repetia, independente da forma de arte. Nietzche, por exemplo: dentre vários atributos, ele foi poeta e compositor. Um dos adjetivos mais simpáticos de seus colegas de Academia foi “a desgraça deste lugar”. Ele morreu na loucura, é bem conhecida à história de como ele surtou na rua ao ver alguém chicoteando um cavalo... Daí foi a decadência do pouco que restava de sua humanidade.
Fora da escrita, é quase impossível não mencionar Van Gogh, aquele sujeito que cortou uma orelha e só vendeu um quadro enquanto vivo.
E dos nacionais eu adoro falar daquele que foi meu tema de Monografia: Lima Barreto. Ele era um funcionário público (o que na época não significava muita coisa... tipo o que vivenciamos de uns meses pra cá, mas deixa quieto) que escrevia crônicas para tabloides. Ele se acabou no álcool, chegando ao internato por diversas vezes, por conta da m*** que um escritor carioca mestiço sem a simpatia da Academia Brasileira de Letras tinha de suportar. Ele faleceu uma semana antes da “Semana”, aquela da Arte Moderna em 1922. Os anos se passaram, e hoje se considera Lima Barreto, aquele bêbado criador de inimigos, um precursor do modernismo. Onde estavam as fontes dele? Além da literatura russa, seus escritos partiam da pura e simples observação do cotidiano, a tal flânerie que mencionei no artigo “A criatividade em um dia comum”. E falando em fontes, vamos fechar esta lista com o seguinte fato:
O autor clássico nem sempre lia clássicos. A tal “literatura russa” que inspirava Lima Barreto na verdade era uma grande tendência entre os romancistas da época, tipo “os idiotas dos meus sei lá o que”, mas em versões físicas, importadas e de traduções que vinham em segunda mão de outro idioma, geralmente o francês.
Van Gogh, como os pintores de sua época, utilizava pincéis de pelo animal e tintas cujo pigmento podia incluir urina, argila, gema de ovo, chumbo, dentre outros componentes que enojariam todo o elenco do “Jackass”. E também vale lembrar que os primeiros esboços de Da Vinci vieram de pedaços de carvão.
Deixa-me grifar isso aqui: tem mijo naqueles quadros valendo milhões. Mijo. Você tá aí preocupado em ditar regras, e o pessoal das antigas pegou orina (sim, ORINA), misturou no óleo e tacou numa tela. Isso, querido(a)(x)(y)(z)(@), é o tal do clássico.
Mas vamos focar no presente? Qual é a orina (ORINA, adorei escrever isso) do escritor no século XXI? Embora não sejam uma prosa, muitas das mídias disponíveis atualmente podem lhe ensinar tanto quanto um livro, talvez mais.

“Eitô, você tá dizendo que um filminho de sessão da tarde dá tanta experiência quanto Camões?”
Bom, todo filme tem um processo criativo nos bastidores. O acesso aos “making of” se tornou um lugar comum, e eu garanto, se você parar pra assistir o de qualquer produção, pequena ou grande, algo de bom virá na sua mente. Saber, por exemplo, que Tarantino teve de filmar uma cena de “Kill Bill” em preto-e-branco porque faltou sangue artificial e ele teve de improvisar com água, não te leva a pensar em como demonstrar o lado visceral de uma cena de combate em grandes proporções? E se você escreve sobre piratas, será que não ajuda ver como Michael Bay replicou parte de um navio antigo para gravar uma tempestade em alto mar no seriado “Black Sails”?
Há narrativas excepcionais dentro de algumas películas. “O Corcunda de Notre Dame” da Disney apresenta o universo de Quasimodo através de um conto com início, meio e fim. Para comprovar meu ponto, eis um link contendo apenas o áudio:
Também há os videogames. Os produzidos pela Telltale são histórias interativas: o foco está na ambientação hostil, colocar o jogador na pele dos personagens, fazê-lo sofrer junto de cada decisão difícil. Não tem tanta graça mostrar, o ideal é que você procure por sua conta a série que eles fizeram de “The Walking Dead”. Faça isso, e depois me agradeça... Outro título que segue essa receita é “Life is Strange”, que gira em torno de Max Caulfield, uma estudante universitária que ganha o poder de voltar no tempo: de início parece uma história adolescente chata, mas o negócio escala de um jeito que RAPAIZ, eu nunca me perdoaria se parasse no episódio dois.
“Call of Juarez: Gunslinger” é um jogo de faroeste narrado por um pistoleiro em uma taberna. O cenário trava quando alguém o interrompe, e no que o narrador muda a história, a situação do personagem jogável se desconstrói, há mudanças repentinas no caminho, como uma estrada que ele recorda de ser emboscado por seis índios... Não, eram cem, milhares deles. Tá, isso é irreal, então foi só uma emboscada com uns quinze peles vermelhas mesmo, te vira caubói. Também, cada fase possui colecionáveis que apresentam parte da história do Velho-Oeste — costumes de época, personagens icônicos, o quanto foi verdade e o quanto foi mito de teatro. Parte desta experiência única está disponível em vídeos:
Por último, pois falando de jogos eu me empolgo (e tem MUITOS artigos que posso escrever no futuro): já ouviu falar em “The Witcher”? Pois é uma série de games baseada numa série de livros de fantasia. No caso, a obra do escritor polonês Andrzej Sapkowski, cuja publicação começou em revistas temáticas na década de 80. Em português, é conhecida como “A Saga do Bruxo Geralt de Rivia”. Pois escritor tem que ler clássico? Eu recomendo, mas não desmereço o que há além deles. Da “literatura de gênero” a bula de remédio, dos filmes de super-heróis ao cinema mudo, tudo que conta uma história é fonte.
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