A criatividade em um dia comum.
- Por Heitor Vasconcelos
- 10 de mai. de 2017
- 4 min de leitura

Quando se busca informações sobre o Processo Criativo, o que mais aparece são conceitos técnicos: divisão da criatividade em fases, não-sei-quantos passos para se livrar do bloqueio, por que criatividade é importante para sua empresa, etc. Estou desmerecendo esse tipo de texto? NÃO! Eles aparecerão por aqui, eventualmente... Mas vamos começar devagar, com algo básico e que nós, tão focados em nossos cadernos, livros e aparatos eletrônicos, acabamos por esquecer.
Conhecem o termo “flâneur”? É um termo francês que significa “errante”, “passeador”, “observador”, em suma, uma pessoa que não tem nada para fazer além de caminhar por aí. Um boêmio. Este era um tipo literário comum no século XIX, que teve em Charles Baudelaire um de seus maiores representantes.
Os textos dos “observadores urbanos” normalmente se focavam em uma ou duas situações do cotidiano, poetizando a rota de um bonde, o comportamento urbano, até a arquitetura — quer dizer, PRINCIPALMENTE a arquitetura — entrava na roda. No Brasil, figuras históricas que evocaram a flânerie em seus textos incluem Lima Barreto, Mário de Andrade, João do Rio, dentre outros exemplos.

“Mas Eitô, isso aí não é crônica? Esses caras que você citou eram todos cronistas”
Sim e não, mas se entramos nessa discussão de gênero literário isso e aquilo eu não chego aonde quero... Porém, recomendo MUITO que você procure um cronista para bater papo depois de ler este artigo, pois o ponto dele é: não há fonte de inspiração maior do que a rotina.
Mais do que conhecermos as letras, temos de conhecer o modo que as pessoas falam, seus gestos corporais, as reações diante daquele ambulante vendendo cortador de legumes no trem, ou como as crianças se comportam no que para elas é um mundo de gigantes barulhentos e cheios de regras. Faz esse experimento, vai para o trabalho sem fones de ouvidos. Sua atenção flutuará por pontos que você nunca imaginaria como excepcionais.

“Mas Eitô, eu O-D-E-I-O andar na rua, pegar transporte é um pesadelo, cadê a poesia no filho de p*** que pisou no meu pé, ou naquele moleque chato que não parava de chorar?”
Querid(o)(a)(x), é aí que sua imaginação começa a voar. Se as pessoas não te interessam e não há um meio de se isolar, você procurará alguma distração automaticamente, tipo olhar pela janela estilo clipe de música triste. E aí você enxergará a disposição dos fios elétricos através dos postes, o jeito de cada pessoa se vestir... Até onde as roupas são um gosto pessoal ou algo padronizado de acordo com idades e gêneros? E por que há aquele sobrado do século retrasado ao lado de um arranha-céu?
De repente alguém puxa um assunto, e você conhece o ponto de vista de um personagem em potencial! E há a parte das caminhadas: os sinais de trânsito, o vento com aroma de chorume, os sons da pouca natureza que resta entre passeios e praças... Quantas árvores você enxerga pela janela de sua repartição durante a pausa do café? Será que elas possuem mais folhas do que as cinzas de cigarro se espalhando no batente? E por que quase todo fumante sente necessidade de tomar café enquanto se mata no vício?

“Mas Eitô, eu trabalho dentro de casa.”
Bom, você tem que sair e fazer compras de mês. Num mercado tem aquele babaca do microfone inventando altas promoções, tem as velhas discutindo com os açougueiros, tem rotinas de reposição de estoque, e aquele leite condensado que P*** QUE P***, que preço é esse? É da Bélgica essa c*****? Ah não, tem que ver esse mais barato aqui, o que tem de diferente... Ele vem com menos? É de que fábrica? Será que eles vendem isso para lavar dinheiro? E enquanto você entra num conflito existencial por causa de uma latinha de doce, tem um fornecedor negociando com o gerente quantos engradados de cerveja precisam até o final de semana, ou um senhor fazendo drift com aquele bendito carrinho que veio empenado pra direita.
Mas vamos esquecer o mercado: bora pensar na padaria de manhã cedo, ou no padeiro que passa de bicicleta/moto e com aquela buzininha. Já imaginou como é ter uma buzina de padeiro em casa? Quantas maneiras diferentes você pode usá-la para irritar alguém, ou quantos esconderijos você teria de arrumar para aquele irmão ou tia pentelha não azucrinar com a p*** toda? Viu, já tem ideia para altos contos brotando aqui.

Para finalizar, proponho um exercício em que não é preciso sair de casa:
Escolha um ponto acessível de sua cidade. Pode ser uma praça, um monumento, avenida, feira, qualquer coisa. Faça uma breve pesquisa sobre o passado deste lugar e escreva algo situado ali, pode ser conto, poema, crônica, artigo de pesquisa, até haikai tá valendo! Eu recomendo algo pequeno, de uma ou duas laudas no máximo. Dependendo do teor de sua história, isso pode acabar numa pesquisa sobre as ruas do entorno, os rios mais próximos, tipos de arquitetura, igrejas... E quem sabe uma razão para sair e contemplar com seus próprios sentidos aquilo que está nos livros? Pois criatividade é isso: expressar vida através da arte.
E a vida está lá fora.
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